pixel «A música também é um prisma privilegiado para olhar questões transversais à vivência humana» – Entrevista a Salwa Castelo Branco | Universidade NOVA de Lisboa

«A música também é um prisma privilegiado para olhar questões transversais à vivência humana» – Entrevista a Salwa Castelo Branco

O percurso no mundo da música e a transformação que levou a Professora a deixar para trás o sonho de ser pianista para se tornar num dos grandes nomes da Etnomusicologia.

Salwa Castelo Branco

Salwa Castelo-Branco é docente do Departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH) e foi recentemente distinguida com uma Cátedra Gulbenkian, atribuída pelo Instituto de Estudos Europeus da Universidade da Califórnia, que permitirá levar ainda mais além o trabalho na área à qual dedicou a maior parte da sua carreira: a Etnomusicologia, disciplina que estuda as múltiplas dimensões da música, sobretudo social, cultural, política, cognitiva e estética.

A atribuição desta cátedra reforça a posição da docente enquanto figura relevante na área das Ciências Musicais, não só a nível nacional como internacional, e que resulta de uma vida e carreira dedicada à música. Nascida no Egito em 1950, cresceu numa família onde a música era uma presença constante, sobretudo por influência do pai, um compositor egípcio proeminente. Aos cinco anos já aprendia piano e aos 12 anos já sabia que queria fazer carreira na música. Estudou no Conservatório e tirou a Licenciatura em Piano na capital egípcia, mas foi em Nova Iorque, nos anos 70, que viria a ter uma vivência artística mais intensa. A viragem para a Etnomusicologia aconteceu quando foi introduzida ao tema no Mestrado em Piano e, ficou de tal modo fascinada, que decidiu trocar a prática pela teoria musical. No início dos anos 80 já tinha na bagagem um Mestrado e um Doutoramento em Etnomusicologia que traria para Portugal, na sequência do casamento com Gustavo Castelo Branco, físico teórico português e Professor no Instituto Superior Técnico.

Desde que integrou o Departamento de Ciências Musicais da NOVA FCSH em 1982, Salwa Castelo Branco transformou as Ciências Musicais em Portugal e tornou-se progressivamente numa das protagonistas na área da Etnomusicologia. Entre as várias ações que levou a cabo, destacam-se a criação do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (INET-MD), que conta hoje com polos na Universidade de Lisboa, na Universidade de Aveiro e no Instituto Politécnico do Porto; e a direção dos quatro volumes da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX (2010), obra que sistematiza todas as vertentes da música no século passado. Mas o seu reportório profissional vai muito além da investigação académica, incluindo o papel ativo na candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade e o cargo que ocupa desde 2013 enquanto Presidente do Conselho Internacional da Música Tradicional, órgão consultivo da UNESCO nas candidaturas a Património Imaterial da Humanidade.

Falámos com a Professora na sede do INET-MD, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da NOVA. Na conversa, a Professora descreveu o seu percurso na área da música, a evolução no perfil dos alunos, a importância da Cátedra Gulbenkian e os projetos que ambiciona ver concluídos. Deixou ainda um importante conselho a todos os que dedicam ao estudo da música.

NOVA (N): A Professora mudou-se para Portugal no início dos anos 80. Como aconteceu a integração do Departamento de Ciências Musicais na NOVA FCSH?

Salwa Castelo Branco (SCB): Falei com a Professora Maria Augusta Barbosa, fundadora do Departamento de Ciências Musicais, numa altura em que havia apenas outros três professores. Ela percebeu logo que eu vinha de uma boa escola e achou que, com a minha formação em Etnomusicologia centrada em espaços fora de Portugal e da Europa, podia ser uma componente importante na formação dos alunos do ensino superior. A minha primeira prioridade foi desenvolver uma geração de profissionais com boa formação. Uma vez que ainda não tínhamos um mestrado e um doutoramento, encorajei vários dos meus alunos a continuar os estudos nos Estados Unidos. Entretanto lançámos o mestrado com uma área de especialização em Etnomusicologia e quando começámos a ter alguma equipa mínima, mesmo ainda sem doutorados, achei que era altura de lançar o Instituto de Etnomusicologia em 1995. Isso coincidiu com a altura em que o ministro Mariano Gago abriu a possibilidade da Fundação para a Ciência e Tecnologia apoiar as Ciências Sociais e Humanas e, nessa altura, ganhámos logo três projetos. Mais tarde, em 1997, demos os primeiros passos naquilo que era concebido como um dicionário e que acabou por ser uma enciclopédia sobre música em Portugal no século XX, publicada em 2010.

N: Como avalia a evolução do Departamento de Ciências Musicais e do Instituto de Etnomusicologia?

SCB: Acho que o balanço é muito positivo porque a Etnomusicologia está firmemente estabelecida no país, o Instituto tem uma reputação muito boa a nível nacional e internacional como instituição de referência e expandimos para outras instituições e áreas de estudo. Considero também que o Instituto contribuiu para dissipar a ideia hierarquizada da música. Não é só a música erudita que é digna de estudo, temos que estudar todas as músicas.

«O Instituto contribuiu para dissipar a ideia hierarquizada da música. Não é só a música erudita que é digna de estudo, temos que estudar todas as músicas.»

Salwa Castelo Branco

N: A publicação da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX foi importante para essa forma de abordar a música?

SCB: Sim. Na capa da Enciclopédia (e isto chocou alguns) temos Luís de Freitas Branco e ao lado temos os bombos de Amarante. E temos o Quim Barreiros, que é um músico muito popular, gostemos ou não da figura. Enquanto estudiosos, temos a obrigação de perceber todos os fenómenos e cruzá-los. No fundo, estudar a música como fenómeno social e cultural, não só a nível local mas também global. A Enciclopédia é uma investigação original e por isso é que levou 13 anos de um trabalho árduo de uma equipa grande. Foi também uma escola, um contexto de aprendizagem para muitos jovens que nela trabalharam. Todos trabalhámos em equipa e em estreita colaboração com os músicos, que cederam muitos materiais com os quais fizemos imensas entrevistas. Por exemplo, antes da Enciclopédia, não havia uma obra rigorosa que narrasse não só a biografia de Amália Rodrigues, mas que explicasse o seu sucesso, o seu contributo para o Fado, a sua inovação e estilo interpretativo ou que explicasse o que a distingue das anteriores fadistas e que descrevesse a sua discografia.

N: As ciências musicais devem ser encaradas como uma convergência de várias áreas sociais e até mesmo das ciências exatas?

SCB: Com certeza. Hoje em dia, tanto a abordagem da Etnomusicologia como das Ciências Musicais em geral, é transdisciplinar, assentando num conhecimento sólido das questões de fundo e dos quadros teóricos que vêm da Antropologia, da Sociologia, das Humanidades, da História, dos Estudos Culturais e das Ciências Sociais em geral. Num certo modo, a música também é um prisma privilegiado para olhar questões transversais à vivência humana. Sabemos também que a música suscita diversas emoções, por isso é importante tentar perceber este fenómeno e através dele utilizar a música no sentido positivo, de criar ambientes propícios a uma vivência saudável.

«A música também é um prisma privilegiado para olhar questões transversais à vivência humana.»

N: Em que consiste a Cátedra Gulbenkian, atribuída pela Universidade da Califórnia em Berkeley?

SCB: Ao abrigo desta cátedra, vou dar a partir do segundo semestre de 2017/2018 um seminário sobre património, incidindo sobretudo sobre o património português no contexto europeu. Vou também dar várias palestras e participar em diversas atividades. A Cátedra Gulbenkian é atribuída através do Instituto de Estudos Europeus da Universidade da Califórnia em Berkeley, mas o Professor tem de estar sempre ligado a um departamento, no meu caso, é o Departamento de Música.

N: Esta cátedra vai ser importante para a Universidade NOVA e para o departamento?

SCB: Sim, sem dúvida. É o início de uma relação mais estreita e de um conjunto de intercâmbios, quer a nível do departamento de música, que tem um bom programa em Musicologia Histórica e Etnomusicologia, como também com o Instituto de Estudos Portugueses e o Instituto de Estudos Europeus. Estas redes são fundamentais institucionalmente porque abrem portas e esse tem sido um dos meus principais papéis, sobretudo pensando no futuro dos jovens.

N: O perfil dos alunos de Ciências Musicais hoje é diferente do perfil dos alunos nos anos 80/90?

SCB: Sim. Pelo menos a nível de licenciatura, temos uma diversidade muito maior. Os alunos dos anos 80, quando comecei a dar licenciatura aqui, eram uma elite selecionada. Eram pessoas que vinham essencialmente do conservatório, já tinham uma boa formação musical e cultural e, regra geral, vinham de meios privilegiados. Esta situação mudou e ainda bem porque a universidade tem de ser aberta, tem de acolher alunos de backgrounds muito diferentes, isso é saudável.

N: Quais são as principais lições e conselhos que procura transmitir aos seus alunos e aos investigadores que procuram uma carreira em Etnomusicologia?

SCB: Ter uma responsabilidade social. Tanto quanto possível, usar a formação para serem cidadãos ativos e responsáveis. Ter um sentido de cidadania e, se possível, sentido de cidadania mundial: sentirem-se não só cidadãos do seu país como cidadãos do mundo. Acho que cada um de nós no seu domínio pode contribuir para isso. No caso da música, esta desempenha um papel social fundamental na integração de populações, no diálogo entre fações em conflito, nas questões de preservação do património e na criação de oportunidades para músicos e grupos. Por isso, devemos abrir portas, ser um elo de ligação entre mundos e contribuir tanto quanto possível para ajudar a melhorar a sociedade em que vivemos. Não tenho uma visão da universidade como uma torre de marfim: a universidade deve ser uma instituição aberta à sociedade e que dê um contributo sério.

«Não tenho uma visão da universidade como uma torre de marfim: a universidade deve ser uma instituição aberta à sociedade e que dê um contributo sério.»

N: Em 2013, numa entrevista que deu pouco depois de ser eleita Presidente do Conselho Internacional da Música Internacional (ICTM), dizia ter como objetivos «levar em frente a organização no sentido de alargar e aprofundar o trabalho, sobretudo em áreas com pouca representação como a África Subsariana, o Médio Oriente ou a América Latina». Qual o balanço que faz destes objetivos?

SCB: No caso do Médio Oriente, infelizmente não conseguimos aprofundar muito o trabalho por causa das diversas guerras que ocorreram. Contudo, tem havido uma relação com países que não estão em guerra, como os países do golfo ou os Emirados Árabes, onde houve um encontro sobre património, por exemplo. Com a Turquia também houve um estreitamento de relações e com a Ásia Central também. O Congresso Mundial de 2015 teve lugar no Cazaquistão: foi pela 1ª vez num país muçulmano e correu muito bem. Também com África Subsariana houve algum progresso e estamos a trabalhar afincadamente com vários países nessa área geográfica.

N: O ICTM é um dos órgãos consultados pela UNESCO em situações de candidatura a Património Imaterial da Humanidade. Para além do Fado e do Cante Alentejano (já elevados a esse título), existe algum outro elemento em Portugal que merecesse a mesma distinção?

SCB: Existem muitos elementos musicais (e não só) em Portugal e com várias candidaturas na forja. Portugal, de Norte a Sul, é um país riquíssimo. Há um fenómeno muito interessante, que está a decorrer desde os anos 90, que é uma grande revitalização das práticas tradicionais em vários contextos. Por exemplo, a gaita-de-foles está de vento em poupa não só em Trás-os-Montes como em Lisboa. Também os grupos de bombos: é impressionante que só em Amarante há 20 e tocam em várias ocasiões. Ou o cavaquinho (sobretudo a Norte), é impressionante a quantidade de grupos de cavaquinho que existem; ou a concertina e os cantares ao desafio, a viola campaniça do Alentejo… impressionante! Há uma grande dinâmica local e uma procura não só de manter as práticas tradicionais como também de inovar e isso é muito importante para a continuidade. Nenhuma prática pode ficar estanque; não pode sobreviver ficando congelada.

Salwa Castelo Branco

N: A Etnomusicologia tenta perceber determinados fenómenos sociais através da música. O que nos pode ensinar a música sobre a globalização?

SCB: A música reflete processos globais, na medida em que há misturas de todo o tipo e vemos isso claramente. Por outro lado, também contribui para os construir sonicamente e acho que esta atenção ao som é algo que até veio surpreendentemente tarde. Hoje em dia, na Etnomusicologia e mesmo na Antropologia, o som (não só musical, mas em geral, do meio natural em que vivemos) é algo que finalmente está a ter atenção dos estudiosos porque nós não vivemos só em edifícios, também vivemos em ambientes sonoros e esses também configuram a nossa vida e temos que os compreender e contribuir para os melhorar.

N: A criação de um Arquivo Sonoro Nacional é um dos projetos que ambiciona ver concretizado. Para além deste, existe algum outro grande projeto do qual gostasse de fazer parte até ao final da sua carreira?

SCB: Gostaria de continuar a fazer investigação cada vez mais colaborativa e de fechar algumas obras começadas e que não tive tempo para completar, como uma monografia sobre o meu trabalho no Alentejo e também regressar um pouco ao meu trabalho no Médio Oriente. Esses são alguns dos projetos que tenho em mente.

N: Se não tivesse vindo para Portugal, qual acha que seria o seu percurso?

SCB: Acho que teria ficado na América, na New York University. Os académicos nos Estado Unidos têm muita mobilidade, pelo que não sei se ficaria na NYU para o resto da minha carreira, mas gosto muito da cidade de Nova Iorque e vivi lá um período da minha vida muito importante. Entre os 20 e os 32 anos foi um período formativo. Aprendi muito não só das diversas escolas em que estive, mas também da própria cidade. A vivência na cidade foi uma experiência intensíssima e é um meio para o qual regresso regularmente e em que me sinto também em casa.