pixel Na primeira pessoa: Andrii Haran     | Universidade NOVA de Lisboa

Na primeira pessoa: Andrii Haran    

Em baixo, Andrii em Kherson, com as ruinas de um cinema soviético em fundo, e com os colegas do Departamento de Engenharia Civil da FCT NOVA

"O meu nome é Andrii Haran. Nasci e cresci na cidade de Kherson no Sul da Ucrânia, a minha família é russófono-ucraniana e os meus avós maternos são bielorussos. De Março a Dezembro de 2022, a minha cidade esteve sob ocupação do regime russo, por isso a minha história é simplesmente impossível sem a história da minha cidade e dos seus heróis. Juntamente com a minha mãe e o irmão mais novo, que tem 4 anos, estou em Portugal há mais de 7 meses -  como estudante da FCT NOVA.

Como todos os ucranianos, acordei às 4 da manhã de 24 de Fevereiro de 2022, devido ao som das explosões. Os russos tinham bombardeado Chornobaivka – o aeroporto – e, durante todo o dia, acompanhou-nos o som dos morteiros no ar e das explosões. Um deles chegou a explodir no nosso pátio, pouco depois de sabermos que já havia um morto – um homem que saíra do abrigo para ir buscar água para a sua mulher grávida. Tudo o que restava dele era uma mancha sangrenta na parede.  

Alguns dias mais tarde, as tropas de ocupação russas chegaram a Kherson, subúrbio de Oleshki e Antonovka, separados pelo Rio Dnipro e ligado pela Ponte Antonovsky. Os defensores de Kherson, apesar de estarem em minoria, conseguiram impedir que os russos atravessassem a ponte durante vários dias. Foi então que as tropas a mando de Putin decidiram começar a usar artilharia e aviões de combate e atacar não só na ponte mas também as aldeias adjacentes de Antonovka e Oleshki.  

Lydia, a minha ex-namorada, vivia em Antonovka e a maior parte do tempo permanecia escondida com a sua família na cave da sua casa – afinal, o filho do seu vizinho fora morto por estilhaços e a rua estava cheias de corpos, gente que perdera a vida, vítima daqueles ataques.  

A ponte Antonovsky é um dos lugares emblemáticos de Kherson. Todos os anos, na véspera de Ano Novo, os cidadãos gostavam de se reunir lá para apreciar o fogo de artifício de ambas as margens do rio Dnipro. Desde que os invasores conseguiram atravessar aquele rio que começaram a aparecer vídeos a mostrar cadáveres dos nossos soldados, esmagados pelos tanques. A ponte, que tinha foi um lugar de unidade para os habitantes da cidade, transformara-se numa vala comum.  

Os russos cercaram a nossa cidade, estabelecendo um bloqueio, e nem permitiram a entrada de comboios humanitários, deliberadamente, criando uma escassez de medicamentos e alimentos. Quando a situação humanitária atingiu um ponto crítico, em Março de 2022, as tropas russas resolveram deixar passar “ajuda humanitária russa”, acompanhada de reportagens de propaganda sobre “residentes de Kherson torturados e  abandonado pelo regime de Kiev".  

Quando os russos assumiram a administração da cidade, o mundo inteiro  ouviu falar pela primeira vez de Kherson: cerca de 5 mil pessoas marcharam até à praça da cidade com símbolos ucranianos, impedindo os ocupantes de criar uma imagem de uma cidade conquistada. Depois o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky concedeu à nossa cidade o título de "Cidade Herói" ou "Cidade Inquebrável". Todos os dias, os cidadãos reuniam-se para comícios em frente dos soldados russos armados, até que, a dada altura, os russos abriram fogo sobre os manifestantes e começaram a atirar-lhes granadas. 

Uma das granadas explodiu aos pés de um homem idoso. Os soldados russos apressaram-se imediatamente a prendê-lo, mas os jovens do nosso lado precipitaram-se numa luta com os soldados armados para impedir que o arrastassem. Punhos contra espingardas. Mas conseguiram e chamaram uma ambulância para ele receber tratamento médico. Nesse dia, todo o dinheiro que recolhemos foi para pagar o seu tratamento.  

Quando a situação na cidade se tornou insuportável, com os soldados russos a pilhar mercearias e a esvaziar casas. Foi quando eu e a minha família decidimos deixar a cidade, mesmo sem os meus avós, que se recusaram a deixar a sua cidade natal. 

O caminho mais seguro era seguir através da Crimeia até conseguir chegar à Geórgia e foi daí que conseguimos um voo para Portugal. Pelo caminho, passamos por dezenas de veículos civis absolutamente desfeitos, que os ocupantes nem se preocuparam em esconder, depois de encaminharem toda a artilharia para a cidade. Já na fronteira com a Crimeia, o cenário não era mais acolhedor: após o controlo de passaportes, os russos enviaram todos os homens com mais de 18 anos - incluindo eu – para o chamado "acampamento" de interrogatório. Aí, obrigaram-me a despir, em busca de uma qualquer tatuagem com símbolos "neo-nazis", e também me tiraram o telemóvel, à procura de fotos que pudessem ser consideradas provocatórias ou contactos de militares ucranianos.  

Durante este interrogatório, o oficial que o conduziu insistiu sempre na necessidade de apoiar o ponto de vista “pró-russo e imperialistas”. E lá nos deixou seguir viagem, até chegarmos a Vladikavkaz, na Ossétia, onde um dos trabalhadores do albergue onde nos instalámos nos diziam: "Está tudo bem, em breve estará libertado dos nazis ucranianos e o tiroteio vai parar".  

Quando, finalmente, chegámos à Geórgia, sentimo-nos aliviados. A Geórgia é um país incrível com pessoas amáveis, honestas e prestativas. Os georgianos compreendem-nos como mais ninguém, porque também eles foram vítimas da agressão russa. Pouco depois, estávamos a aterrar em Portugal, onde, com a ajuda dos portugueses, nos pudemos finalmente sentir seguros.

Em Novembro de 2022, Kherson foi libertada do jugo russo. A cidade inteira celebrou durante uma semana - até os russos retomarem os seus ataques terroristas contra a cidade. Durante dezembro, os russos bombardearam Tavrichesky, na região de Kherson, disparando morteiros de diversos calibres no Centro de Reabilitação para Crianças, na Maternidade, na Policlínica e uma série de edifícios de civis. Uma bomba atingiu mesmo o telhado do hospital que o meu avô visita, mas, felizmente, não explodiu.  

A Ucrânia precisa de apoio humanitário e militar, não para continuar esta guerra, mas para lhe pôr fim. Desejo que todas as cidades da Ucrânia possam celebrar a sua libertação da mesma forma que Kherson em 11 de Novembro de 2022.